Diante de tal devastação, de tal gravidade, a única postura possível é a de um pacifismo radical, que parta da premissa de que nenhum assassinato é aceitável. No pacifismo, dissipam-se ou deveriam se dissipar as origens e as afinidades. Não importa que eu tenha raízes judaicas, que meus bisavós tenham sido exterminados nos campos, que eu julgue que o povo judeu necessita de seu espaço: isso jamais me fará endossar o morticínio que seu governo provoca. Não importa que eu reconheça a justiça e a urgência da causa palestina, seu direito a um país livre e próprio: isso jamais me fará minimizar a dor provocada pela brutalidade do Hamas.
Não se derive do pacifismo uma neutralidade, a percepção equivocada de que não haveria no conflito um desequilíbrio, a típica desigualdade entre opressores e oprimidos, entre os que se valem da força para ocupar e os que apenas se ocupam de subsistir. Não se confunda o pacifismo com indiferença ou apatia, com uma condenação genérica de tragédias, uma desatenção às dores específicas, à dor dos outros que nunca pode ser desprezada ou obscurecida. Não se traduza o desejo de paz como legalismo, como aceitação acrítica de um estado de coisas insatisfatório para todos, terrível para tantos, muito aquém do que a humanidade anseia para si.
Que cada povo oprimido faça uso de todas as formas não-violentas de resistência, e se articule e se aglutine e reaja e denuncie e sensibilize e apele aos outros povos do mundo de todas as maneiras possíveis — maneiras que não me cabe elencar porque eles as conhecem muito melhor do que eu poderia conhecer. Quanto ao possível opressor, se atacado por aqueles que oprime, que empregue seu poderio estritamente em se defender, em garantir ao máximo que seus cidadãos estejam seguros, mas sem infligir sobre os outros uma nova violência e sem perder a clareza de que jamais haverá segurança absoluta onde há segregação e miséria.
Alguém poderá acusar, com bastante razão, que este texto é em si o desatino, o ato de insanidade de um pequeno escritor. Por que um sujeito tão distante dos acontecimentos, tão insignificante ante as autoridades, pensaria em tomar a palavra para dizer o que pensa das ingentes ações que lhe escapam, que apenas o atordoam e o comovem? Talvez por observar que o belicismo dos territórios críticos teima em se propagar mundo afora, e avança na visceralidade de discursos carregados de preconceito e ódio, reverberando então em inúmeras violências menores.
Sente, assim, a necessidade de insistir numa verdade elementar, na crítica enfática a toda guerra, a toda violência e toda brutalidade, a tudo aquilo que nunca é justo e nunca é sensato. Em algumas circunstâncias, é certo, a violência pode até ser compreendida, pode ser encarada como gesto desesperado, mas nem por isso deve ser naturalizada ou aceita, e muito menos estimulada ou financiada. Esqueçam-se os ânimos que nos movem: todo ato de morte deve ser condenado de maneira insofismável.
Liev Tolstói tinha oitenta anos, esperava a morte a qualquer momento, quando sentiu a necessidade de tomar a palavra no Congresso da Paz em Estocolmo. Ali retomou seu discurso contra a guerra e contra todo assassínio, contra a violência em todas as suas faces. Ali repetiu essa verdade “tão simples, tão clara, tão evidente, tão necessária (…) que basta revelá-la por inteiro, em todo o seu significado, e as pessoas já não poderão agir contra ela.” Era 1909, em poucos anos o mundo inteiro agiria contra tal verdade e se deixaria tomar por sua destruição maior. Foi grande a ingenuidade de Tolstói, sim, mas estou certo de que ele não se arrependeu de ter dito suas palavras.
Este artigo foi retirado de https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2023/10/21/por-um-pacifismo-radical-recusa-de-toda-guerra-e-toda-forma-de-violencia.htm