Na coluna desta semana, convido o leitor a realizar um exercício. Procure no Google as fotos do Congresso Nacional da Mulher, realizado em Pequim na semana passada. Observe quem está nas fileiras da frente e quem está no plano de fundo. Em seguida, pesquise a lista dos oficiais chineses que ocupam os principais órgãos decisórios do país, como o Conselho de Estado e o Politburo. É possível notar algo em comum: não há nenhuma mulher presente em nenhum desses exemplos.
Destacar esse ponto pode parecer algo relacionado à chamada cultura “woke”, que é frequentemente criticada por reacionários. No entanto, trata-se de uma questão simbólica de grande importância. São esses homens engravatados que estão discutindo o papel que as mulheres devem desempenhar na sociedade chinesa atual. E os reflexos disso vão além da simples promoção da diversidade.
Tomemos como exemplo o discurso de Xi Jinping durante esse mesmo congresso. Segundo a Xinhua, a agência oficial do governo (e geralmente a única autorizada a relatar esses discursos), o líder chinês pediu às mulheres que trabalhem pela “harmonia familiar e social, pelo desenvolvimento e progresso nacional”. Ele defendeu uma “nova cultura de casamento e reprodução” e a necessidade de remodelar a forma como os jovens pensam sobre temas como “casamento, maternidade e família”.
Esse discurso revela claramente as expectativas em relação às mulheres e contrasta drasticamente com o papel que elas desempenharam na fundação do Partido Comunista. As mulheres chinesas estiveram na linha de frente do Movimento de Quatro de Maio de 1919, que buscava o fim da ocupação estrangeira na China e a instauração de um novo sistema político que refletisse suas demandas.
Essas mulheres protestaram nas ruas exigindo o fim dos casamentos arranjados e da dolorosa prática de atadura dos pés (um padrão de beleza manchu que deformou os pés de muitas jovens chinesas). Elas lutaram pelo direito de trabalhar e pelo direito ao divórcio e à propriedade compartilhada de bens, que anteriormente estava restrita aos maridos.
Essas mesmas mulheres foram cooptadas pelos revolucionários do Partido Comunista e ajudaram a propagandear a ideia de que a China funcionaria melhor sob o comunismo. Após a guerra civil em 1949 e a ascensão de Mao ao poder, elas conseguiram algumas conquistas, mas foram silenciadas quando começaram a “exigir demais”. Como assim queriam uma representação igualitária nas decisões do Partido? E qual é o problema em ocupar cargos de gerência em empresas estatais?
As mulheres feministas desse período de intensa agitação política foram gradualmente removidas de suas posições e relegadas ao ostracismo. Durante a Revolução Cultural, seus problemas foram considerados uma forma de pensamento subversivo. Como resultado, quando a China se abriu para o mundo novamente em 1978, o movimento feminista não conseguiu formar uma nova geração.
A Federação das Mulheres de Toda a China, fundada pela feminista Cai Chang, filha de uma mãe corajosa que decidiu se separar do marido e uma ativista proeminente pelo fim dos casamentos arranjados, foi cooptada pelo Partido e teve seus rumos definidos por homens. Políticas brutais, como a do filho único, foram implementadas, obrigando milhões de mulheres chinesas a passarem por abortos e esterilizações forçadas.
Quando Xi pede por uma nova cultura de casamento, por uma nova compreensão sobre o significado da maternidade e ao advogar pelo papel da mulher, ele deixa claro sua intenção de instrumentalizar a participação feminina na política nacional.
Embora as mulheres talvez não sejam suficientes para ocupar cargos de liderança, elas serão essenciais para reverter a perigosa crise demográfica da China, com uma população que está envelhecendo e diminuindo. Essa mudança pode ocorrer por meio de incentivos, como os benefícios fiscais e subsídios oferecidos por muitas províncias para aqueles que têm mais de um filho, ou pode ocorrer de forma coercitiva.
Desde a implementação do Código Civil em 2021, o divórcio na China se tornou um processo burocrático, longo e doloroso. Surgiram inúmeras notícias de feminicídio, envolvendo mulheres que tentavam se divorciar de maridos agressivos, mas eram impedidas pelas autoridades locais. Agora, há quem espere uma reversão nos direitos conquistados ao longo da história, como o direito a um aborto seguro. Aos olhos de Xi e seus aliados, tudo isso é feito em nome da “harmonia”.
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e informe que a fonte deste artigo é https://www1.folha.uol.com.br/colunas/igor-patrick/2023/11/xi-jinping-deixou-clara-sua-intencao-de-instrumentalizar-mulheres-na-china.shtml