Opinião - Bia Braune: Às vezes, mais difícil do que completar uma coleção é escapar dela

Desafios da coleção e da fuga: Uma perspectiva de Bia Braune

Enquanto ele digitava, mão direita apoiada num mousepad com escudo do Fluminense, meus olhos davam uma panorâmica pelas estantes do doutor Aníbal. Havia dois ou três volumes de anatomia humana. Um porta-retrato com filha sorridente. O resto era tudo coruja.

De gesso, de vidro, de madeira. Numa profusão tamanha que me levou à pergunta retórica, tendendo mais a constatação cretina. “Quer dizer, então, que o senhor ama corujas?”

Após um gole tenso numa canequinha tricolor, me contou sua história desprovida de paixões individuais. “Minha filha, eu sentei aqui faz 46 anos. Um dia, um paciente chegou com uma coruja. Agradeci. De lá para cá, é isso que você vê. Não coleciono corujas: vão me dando corujas. Já tirei mais de 200 daqui, minha filha. E continuam chegando.”

Curioso pensar no médico como vítima desanimada de um cerco à moda de “Os Pássaros”. Conheço tanta gente feliz com seus pinguins, macacos e vaquinhas. Bichos são sempre muito colecionáveis. Aliás, que fique clara a regra do acúmulo: a partir de três itens, já é coleção. Você pode estar distraído ou em negação, mas é.

Como toda pessoa apaixonada por objetos, tenho meu próprio acervo —mantido, claro, em aberto. Primeiro, porque me falta disciplina para coleções numeradas. Segundo, porque gosto de ser uma espécie de “Sísifa” das quinquilharias, nunca dando minha missão por encerrada.

Inclusive, cada dia sob o sol colecionista é um aprendizado. Hoje, por exemplo: recebi uma newsletter de leilões e entendi a diferença entre numismática, exonúmia e falerística. Só não dou a explicação agora, pois excederia minhas linhas e avançaria pela seção do sudoku. Deus me livre, desagradar a quem tem outro hobby.

Há coleções tidas como mais (tênis, canetas) ou menos úteis (vidros vazios, anões de jardim, ex-maridos). Porém, acho tudo lúdico e me pego encantada por obsessões alheias. Até quando escapam ao controle e ganham apartamento privativo, para abrigar milhares de bonecas ou fitas VHS de novela. Assim, vou constatando que, na real, sou inveterada colecionadora de coleções.

“Tá aqui a receita do remédio, minha filha.” Interrompendo meu devaneio, lá estava doutor Aníbal. Resignado. Sem tentar escapar das corujas. Parafraseando Cortázar, às vezes não é a coisa que nos é presenteada, mas nós que viramos o presentinho da coisa.


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