No próximo dia 5 de novembro completam-se dois anos da morte de Marília Mendonça. Ela estava no auge da carreira e era a artista mais popular não apenas da música sertaneja, mas talvez de toda a música brasileira, quando seu avião caiu perto de Caratinga, em Minas Gerais.
Desde que faleceu, o legado de Marília Mendonça tem passado por transformações. Uma das mais recentes ocorreu nesta semana, quando uma de suas principais composições, o bolerão “Infiel”, apareceu nas redes sociais na voz de Elis Regina.
Claramente, trata-se de uma recriação feita por uma inteligência artificial, já que a diva da MPB faleceu em 1982 e, portanto, não poderia ter cantado uma música de Marília Mendonça.
Apesar de o áudio de Elis cantando “Infiel” não ser perfeito, impressiona a conexão entre a voz da cantora e a temática da sofrência. Quem poderia imaginar! Foi necessário que a inteligência artificial apresentasse, por meio das notas e dos timbres, as semelhanças entre Elis e Mendonça para que muitos percebessem o óbvio: ambas possuem a mesma raiz musical.
Elis era uma cantora do gênero “bolerístico” da música brasileira, que foi muito popular no Brasil nos anos 1950. Originado do México, esse gênero se tornou brasileiro e dominou as paradas de rádio quando Elis era criança, deixando uma marca indelével em sua formação musical. Ela nunca negou essa influência e afirmou várias vezes que a cantora Ângela Maria era sua grande ídola.
O bolero mexicano também é uma das fundações da música sertaneja. Esse gênero foi uma das forças estéticas que moldaram a música sertaneja, com sua predileção pelos melodramas exagerados, pelo canto virtuoso e cheio de vibrato, e pelas músicas cheias de intensidade emocional.
Essa influência “bolerística” de Elis causou alguns atritos no meio da MPB e entre os adeptos da bossa nova. O recente documentário “Elis & Tom”, que mostrou a gravação do álbum homônimo de 1974, evidenciou bem a difícil relação que os puristas da bossa nova tinham com a cantora gaúcha.
Tom Jobim, um dos grandes nomes da bossa nova, inicialmente repudiou o estilo de canto de Elis. Sua interpretação era intensa, melodramática e exuberante, ou seja, tudo o que a bossa nova havia rejeitado.
De forma irônica, Tom a apelidou de “hélice Regina”, uma alcunha maldosa que ela recebeu devido aos movimentos intensos e expressivos de seus braços quando apareceu para o grande público em 1965. Elis estava acostumada a cantar canções dramáticas, e sua performance expressava isso.
Para desgosto de alguns membros da MPB e da bossa nova, a carreira de Elis foi marcada por importantes incursões no bolero.
Seu segundo álbum, “Poema de Amor”, lançado em 1962, trazia nada menos que cinco boleros: “Poema”, “Nos Teus lábios”, “Saudade É Recordar”, “Canção de Enganar Despedida” e “Podes Voltar”. Os títulos sentimentais deixavam claro: Elis era uma cantora da sofrência avant la lettre.
Para ilustrar ainda mais as semelhanças com os “boleristas” sertanejos, seu álbum de 1962 foi produzido por Palmeira, da dupla sertaneja com Biá.
O maior sucesso de Palmeira & Biá foi o bolero “Boneca Cobiçada”, lançado em 1956, que se tornou uma das músicas mais tocadas daquela década. Na época, Palmeira trabalhava como produtor na gravadora Continental e ajudou a escolher o repertório do álbum da então jovem cantora.
A carreira de Elis foi marcada por diversas gravações de boleros que se tornaram clássicos. No álbum “Elis”, de 1974, a gaúcha gravou “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, uma canção de Aldir Blanc e João Bosco, um de seus maiores sucessos.
Em 1978, “Esta Tarde Vi Llover”, um clássico do “bolerista” mexicano Armando Manzanero, entrou no repertório do show “Transversal do Tempo”.
Em 1979, ela gravou no álbum “Elis, Essa Mulher” a canção “Bolero de Satã”, de Guinga e Paulo César Pinheiro. E convidou outro grande nome histórico do bolero, o cantor Cauby Peixoto, para acompanhá-la.
A última gravação de Elis em estúdio foi a versão em português de outro bolero de Armando Manzanero, intitulada “Me Deixas Louca”. Essa música foi encomendada pelo diretor Daniel Filho para a novela “Brilhante”, da Globo, em 1981. Em sua autobiografia, intitulada “O Circo Eletrônico: Fazendo TV no Brasil”, Daniel Filho falou sobre a estética exagerada buscada na regravação.
“Lembro que ela me ligou do estúdio: ‘Daniel, como você quer que eu cante essa música, esse bolero?’ E eu falei: ‘Com paixão, Elis, com paixão. Como diz a letra: sinta, Elis, sinta!’”
Ela riu daquele jeito característico dela do outro lado da linha. Ao ouvir essa gravação de Elis, percebemos a interpretação afetuosa, sussurrada, carinhosa e feminina que ela deu à música.
Não é surpreendente que “Infiel” tenha se encaixado tão bem na voz de Elis Regina, a rainha da sofrência da MPB. O bolero une as intensidades melodramáticas da música sertaneja e da MPB de Elis Regina.
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