Julián Fuks: Uma menina mergulha no mar -reflexões parciais sobre a paternidade

Reflexões sobre a paternidade: A jornada de Julián Fuks na obra “Uma menina mergulha no mar”

Lembro do tempo em que eu ensaiava uma paternidade teórica através dos livros, passava horas em leituras sobre o insólito comportamento de crianças hipotéticas, horas que agora me faltam porque crianças muito reais as consomem. A paternidade teórica talvez se resuma em princípios de extrema simplicidade: basta ali tornar-se presença atenta, existir como pessoa razoável, despender com fartura a paciência, a alegria, o carinho que tenhamos. A paternidade real traz desafios maiores, exige de nós essas virtudes monásticas enquanto a criança grita por algum detalhe incontornável, uma pulseira estilhaçada, um doce esfarelado, uma roupa que não cabe mais — exige que não nos façamos ríspidos mesmo ante mesquinhas contrariedades.

Nunca se chega a ser o pai abstrato, o pai quimérico que os livros constroem, só o que se pode ser é pai de crianças específicas, únicas, singulares. A mim calhou tornar-me pai de uma menina doce, sensível, gentil em cada um de seus atos, que no entanto se deixa visitar à noite por pesadelos constantes, por angústias que a intrigam e a atordoam. Calhou também tornar-me pai de outra menina, guerreira, teimosa como poucas, em constante atrito com o mundo, e ávida por se reconciliar com ele no instante seguinte a cada confronto. Uma menina que dispõe, todavia, de um humor criativo e ágil, e dorme um sono plácido a cada noite, e revela a absoluta injustiça das palavras que aqui digo, dos juízos redutores.

Ainda não cheguei a entender bem o que o sonho de Tulipa falava sobre ela, mas não tenho dificuldade em torná-lo sonho meu e depreender o que fala sobre mim. A paternidade pode ser esse mar revolto que nos empurra e nos arrasta, e nos afasta de qualquer chão, e nos rouba o ar e nos rouba as palavras. Pode fazer com que nos sintamos pequenos e desamparados e arrependidos do que alguma vez desejamos. Mas por sossego nenhum no mundo, por calmaria nenhuma, eu gostaria de voltar às águas rasas em que chapinhava antes desse mergulho intenso e espantoso. Quero ainda muito aproveitar desse fundo.

Esta noite, Tulipa assomou de novo à nossa cama e se pôr a narrar um novo sonho. Contou que viu um caminhão aberto e não resistiu a subir e assumir o controle. Os pedais estavam ao alcance de suas pernas, mas o caminhão não tinha volante e ela saiu dirigindo desgovernada, batendo em todo carro que aparecia de chofre. Viu que o caminhoneiro deixara também um celular, e decidiu então ligar à polícia, que logo apareceu, e a salvou, e a prendeu. Passei a noite lá presa, longe de vocês, disse ela, e vocês morreram de tanta tristeza.

Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2023/11/04/uma-menina-mergulha-no-mar–reflexoes-parciais-sobre-a-paternidade.htm


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