18 de outubro. Ivry-sur-Seine é um subúrbio sem nada do visual parisiense. A arquitetura dos prédios públicos é a do brutalismo dos anos 1960, de inspiração soviética. Raros são os cafés e bistrôs. Os passageiros da linha sete do metrô são mais pobres que os da cinco.
É um bastião do PCF que elege prefeitos comunistas desde 1925. Fico a uma cuspida da rua Lénine, que até 1962 se chamava Staline. Contudo, o arrabalde foi desindustrializado, não é mais uma periferia operária. A maioria é descendente de africanos ou árabes.
19 de outubro. Os amigos não levam fé na França Insubmissa, a nova tentativa para reerguer a esquerda europeia, cujo último malogro foi o Podemos, na Espanha. Alain acha que o partido faz média com o integrismo islâmico. Natalie diz que seu líder, Jean-Luc Mélenchon, é muito personalista.
21 de outubro. A caminho da Côte d’Azur, faço escala em Vichy, capital da França pró-nazista por quatro anos, a partir de 1940. Foi dada aqui a ordem para mandar judeus para os campos de extermínio.
Sem um busto de Pétain que vige em Vichy o mito que, naqueles anos, a França estava em Londres, com De Gaulle. Das três palavras do lema de Pétain, duas estão no de Bolsonaro, que obedecia a Trump como o marechal a Hitler: “Trabalho, Pátria, Família”.
22 de outubro. As águas de Vichy são enaltecidas desde que Roma colonizou a Gália. Tomei a Célestins e até a Boussange, com seu buquê de ovo podre. Um folheto prometia cútis de pêssego e fígado zero quilômetro, mas deu chabu.
Na certa fiquei demais nas termas, cuja receita dizia o seguinte. Cozinhe o cidadão em banho-maria na piscina morna. Amoleça-o na sauna a vapor. Mergulhe suas pernas numa tina de água prestes a congelar. Doure-o na sauna seca. Açoite-o com ducha gélida até virar geleia. Sirva-o de roupão na espreguiçadeira.
24 de outubro. Cannes, cidade onde cobri um festival quando o cinema era mudo, continua com Ferraris estacionadas na Croisette. A língua do luxo oligárquico é a mesma, mas agora se escuta mais russo que árabe no Majestic, no Martinez e no Carlton.
No Carlton, aliás, entrevistei Lars von Trier, que debutava nas telas com “O Elemento do Crime”. Era um punk erudito: bebia cerveja no gargalo e discorria sem deslizes sobre Dante e Borges.
26 de outubro. Não há azul tão azul quanto o da baía dos Anjos, em Nice. Quando o horizonte do Mediterrâneo se mescla com o céu provençal do outono, a abóbada de luz se transmuta no índigo, no lápis-lazúli, no ponto de refração do espectro equidistante entre o azul-violeta e o azul-marinho —o azul da Côte d’Azur. Como o azul cerúleo de Nice é mudo, ecoemos Mallarmé: “O Anil! o Anil! o Anil! O Anil!”.
Para que as férias sejam dignas, é mister ler a edição em papel do velho Herald Tribune, que hoje se chama International New York Times. Se possível, a leitura deve ser feita ao cair da tarde, tomando bellini, ou um Aperol spritz, ao ar livre. Sugiro dar especial atenção à coluna “Modern Love”.
28 de outubro. O Principado de Mônaco avançou mar adentro e está apinhado de prédios abomináveis. Entre os novos, o mais bonito —sem qualquer patriotismo— é o Petite Afrique, do nosso Isay Weinfeld. São 12 andares abraçados por terraços silvestres.
Passei décadas jurando que o aquário de Mônaco era genial; por ser antigo, sóbrio e ter sido projetado pelo príncipe Rainier, o lobo do mar que se casou com Grace Kelly. Ledo engano. “Disneyficado”, o aquário está com painéis berrantes e uma trilha sonora com marulhos. A desilusão só não é total porque as medusas bailam por ele, suavemente.
30 de outubro. O apartamento em Menton fica no topo na Cidade Velha, no centro histórico. Vê-se da janela a torre da basílica de São Miguel Arcanjo, biscuit do barroco provençal, e a fachada da capela da Conceição com as três estátuas das virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade.
Por estar ao lado da Ligúria, a cidade cultua a cozinha franco-italiana. É por isso que a socca, a crepe de farinha de grão de bico, chama-se farinata na Itália. E que a pissaladière seja a pizza, mas francesa.
1º de novembro. Como o néctar de Menton é o limão, um dos mais famosos do mundo, visitei o “terroir” cujo dono conseguiu com que o burgo obtivesse o selo “appellation geographique d’origine”.
É um título tão nobre quanto o outorgado aos vinhos de Bordeaux, só que para limões. No fim, pude sorver, bem devagar, um dedo da limonada local. Não sei não. Na caipirinha, é muito melhor se garantir com o limão taiti.
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e informe que a fonte deste artigo é https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2023/10/diario-da-cote-dazur-dos-porsches-de-cannes-aos-limoes-de-menton.shtml